Se o “marxismo cultural” realmente existisse e pudesse ser personificado numa figura pública, essa persona teria, no Brasil, o rosto, as ações e as ideias de Jair Bolsonaro. Em nome de uma suposta defesa dos valores ocidentais, nenhum presidente da República “aparelhou” tanto as instituições brasileiras quanto o este discípulo do filósofo de extrema-direita Olavo de Carvalho.

Mas o conceito de “marxismo cultural” não se sustenta – se é que um dia já fez sentido –, conforme detalharam Elisa Martins e Pablo Ortellado na última edição do podcast Guerras Culturais, do jornal O Globo. Antes de mostrarem como Bolsonaro ressuscitou esse tema em causa própria, Pablo e Elisa recordaram as origens do “marxismo cultural”.

Foi o pensador norte-americano Michael Minnicino que cunhou – e depois renegou – o conceito. Tudo começou com um artigo publicado em 1991 na revista do movimento conspiracionista LaRouche. O texto de Minnicino acusava a Escola de Frankfurt e seus principais expoentes – como os filósofos Theodor Adorno e Walter Benjamin – de articulares uma conspiração marxista para “abalar os fundamentos da civilização judaico-cristã”.

Conforme essa teoria estapafúrdia, os intelectuais de Frankfurt, assim como o revolucionário italiano Antonio Gramsci, teriam influenciado políticos de esquerda, professores, jornalistas e artistas, numa espécie de lavagem cerebral. Assim, de forma sutil, mas profissional, um suposto “marxismo cultural” estaria ganhando corpo entre formadores de opinião, impactando os meios acadêmicos e culturais. Tudo para demolir os pilares do mundo ocidental.

Mas em 2011, logo após o atentado terrorista na Noruega que deixou dois 77 mortos e 319 feridos, Minnicino, inusitadamente, se retratou em uma nota pública contra o LaRouche. “Vejo muito claramente que todo o empreendimento foi irremediavelmente deformado pelo desejo de apoiar de alguma forma a visão de mundo lunática do Sr. LaRouche”, disparou o autor. “Nesse sentido, não mantenho o que escrevi, e acho lamentável que ainda seja lembrado.”

Só que já era tarde. Charlatões em todo o mundo, como o “guru do bolsonarismo”, Olavo de Carvalho, apropriaram-se do conceito e se tornaram propagandistas dessa fake news. Na campanha eleitoral de 2018, a pregação anticomunista chegou ao auge e ajudou a eleger não apenas um presidente extremista – mas também uma vasta bancada de parlamentares ultradireitista.

“Na proximidade com a família Bolsonaro e com aliados do presidente, Olavo ajudou a popularizar entre conservadores a ideia de que existe um “grande plano” articulado por progressistas para manipular as massas. A ideia se propagou rapidamente entre bolsonaristas, e o plano de governo de 2018 de Jair Bolsonaro já denunciava a existência de um movimento para ‘minar os valores da nação e da família brasileira’”, explica Ortellado no podcast.

O governo Bolsonaro, no entanto, começou a aplicar justamente aquilo que criticava. “Na primeira live depois de eleito, o presidente apareceu com um dos livros de Olavo na mesa. E um dos primeiros atos de governo foi a extinção do Ministério da Cultura.”

Para “aparelhar” a máquina pública e impor sua visão atrasada, Bolsonaro nomeou ministros “olavistas” em cargos estratégicos, como Ernesto Araújo no Itamaraty e Abraham Weintraub no Ministério da Educação. “Foi Olavo também que indicou Murilo Resende Ferreira ao cargo de diretor de Avaliação de Ensino Básico do Inep, órgão responsável pelo Enem. Ferreira acabou afastado depois de ter sido acusado de plágio — justamente do artigo de Minnicino”, lembrou o podcast. “Mas essas ideias continuam em voga inclusive na campanha à reeleição de Bolsonaro, que promete o ‘desaparelhamento ideológico da sociedade e do aparato do Estado’”.

Bolsonaro fez, enfim, o que Olavo de Carvalho acusava a esquerda de fazer: “Em muitos livros, vídeos, aulas e palestras, Olavo defendeu que a orientação de Gramsci de disputar a hegemonia cultural era na verdade a estratégia principal perseguida de maneira dissimulada por uma elite oculta progressista. E que esse suposto plano seria colocado em prática por pessoas propositadamente colocadas nos meios de comunicação, nas escolas, nas universidades”.

O advogado Horácio de Neiva, ex-aluno de Olavo de Carvalho, confirma a suspeita: “Existe um paradoxo porque a crítica que Olavo fazia da ocupação de espaços era também um plano que ele tinha. A alternativa que ele oferecia para a hegemonia cultural esquerdista era a formação de uma hegemonia ou contra hegemonia por parte da direita numa visão de combater o inimigo fazendo exatamente aquilo que se estava combatendo”.

O autor do atentado na Noruega conhecia o artigo de Minnicino e chegou a postar, no Facebook, que seu ataque foi um “ato em defesa da Europa” contra o Islã, o feminismo e o “marxismo cultural”. Foi um gatilho para Minnicino voltar atrás e se tornar – ele próprio – um pensador a desmascarar o conceito.

Muitos apoiadores de Bolsonaro na eleição presidencial de 2018 também mudaram de opinião e passaram a denunciar as táticas do bolsonarismo, que incluem campanhas de desinformação, ódio e medo. O presidente deu um passo além e tentou “aparelhar” as Forças Armadas, o Judiciário e até as igrejas neopentecostais. O fantasma do “marxismo cultural” serviu apenas para acobertar os crimes de Bolsonaro.