Rússia investiga atentado que matou filha de filósofo
A jornalista e cientista política Daria Dugina, filha do pensador russo Alexander Dugin, considerado um dos formuladores do eurasianismo, foi morta no sábado (20) à noite em um atentado nos arredores de Moscou, quando retornava de um festival na capital russa, onde o pai foi um dos palestrantes.
O Toyota Land Cruiser que ela dirigia explodiu na rodovia Mozhayskoe, perto da vila de Bolshie Vyazyoma, às 21h30. Quando os bombeiros chamados por testemunhas chegaram, o carro inteiro estava em chamas. Seu cadáver incinerado foi encontrado no veículo após a extinção do fogo. De acordo com dados preliminares, a potência do artefato explosivo correspondeu a 400 gramas de TNT, tendo sido plantado na parte inferior sob o banco do motorista. Daria tinha 30 anos de idade.
As autoridades russas anunciaram a instauração de uma investigação do homicídio. Em comunicado, o Comitê de Investigação da Rússia assinalou que, pelos dados disponíveis, se tratou de “um crime planejado e sob encomenda”.
“Os Dugins saíram do festival em carros diferentes. O carro do pai estava quase atrás da filha. A explosão na curva da rodovia ocorreu diante de seus olhos”, disse uma testemunha ao jornal russo Komsomolskaya Pravda.
O festival tradicional de que os Dugins participaram tinha patrocínio federal e do governo de Moscou e havia sido amplamente noticiado. “Havia muitos convidados, as pessoas estacionaram seus carros à esquerda e à direita na rodovia. O estacionamento estava lotado. O jipe em que Daria deixou o evento também estava lá. Não houve fiscalização à chegada ao estacionamento, pelo que os explosivos podiam ser instalados em qualquer lugar e por qualquer pessoa”, disse uma fonte à agência russa TASS.
Sanções e ameaças
Dugin disse aos investigadores que ele e sua filha receberam recentemente muitas ameaças de extremistas ucranianos via redes sociais, mas não atribuíram nenhuma importância a elas.
Desde março de 2022, Daria estava na lista de sancionados de Washington, após artigo em que advertira que o ingresso da Ucrânia na OTAN levaria ao seu perecimento como Estado.
Dugin está nessa lista desde 2015, por apoiar o levante antifascista do Donbass contra o golpe de Estado CIA/neonazis de 2014 em Kiev. Daria também dirigia o site Mundo Unido Internacional, classificado pelo Departamento do Tesouro dos EUA como “meio de desinformação”.
O diretor do Instituto de Estudos Políticos, Sergei Markov, mostrou-se convencido de que o ataque foi dirigido contra Alexandr Dugin: “Primeiro, porque Daria estava trabalhando nos projetos de seu pai; segundo, porque Dugin iria viajar no mesmo veículo e em no último momento ele foi em outro; e, terceiro, porque ele é uma figura pública várias vezes mais relevante que ela”.
Também Andrei Krasnov, amigo da família e dirigente do movimento ‘Horizontes Russos’, relatou à TASS que o veículo que explodiu é “o carro do pai dela”. “Daria dirige outro carro, mas ela dirigiu o carro dele hoje e Alexander foi separadamente”.
“Terror de estado” do regime de Kiev
A primeira personalidade a denunciar que se tratou de um atentado e a responsabilizar pelo crime os “terroristas do regime ucraniano” foi o atual líder da República Popular do Donetsk, Denis Pushilin, cujo antecessor foi morto em explosão semelhante.
“Canalhas!”, indignou-se Pushilin. Segundo ele, “os terroristas do regime ucraniano, tentando eliminar Alexander Dugin, explodiram sua filha”. “Que seja abençoada a memória de Daria, ela é uma garota russa de verdade!”, ele a homenageou via Telegram.
A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, Maria Zakharova, disse que se a versão do “rastro ucraniano” no caso do assassinato da jornalista e cientista política Daria Dugina for confirmada pelas autoridades competentes, “então devemos falar sobre uma política de terrorismo de Estado” de parte de Kiev.
De acordo com Zakharova, há muitos fatos que se acumularam ao longo dos anos: desde apelos da liderança à violência política até à participação de estruturas estatais ucranianas em crimes.
A mídia alistada ao esforço de guerra por procuração do Pentágono gosta de intitular Alexander Dugin de “rasputin” ou “guru” de Putin – como se o presidente russo não tivesse capacidade de ter ideias próprias e cujas raízes vão além do conhecido filósofo, a mais notória delas, as concepções de Evgeni Primakov, de contraposição à submissão da Rússia à ditadura ocidental, através da restauração dos laços com a China e com a Ásia.
‘Classificação’ que espelha a realidade dos EUA, que nas últimas décadas conviveu com luminares do pensamento humano do porte de W. Bush, Trump e, agora, Biden.
Em uma entrevista de 2020, Dugin definiu o neoeurasianismo como uma síntese de ideologias de esquerda e direita cujos elementos são a luta por um mundo multipolar; a busca de uma alternativa ao liberalismo em escala global, o reconhecimento do valor de todas as culturas e de todos os povos, o antirracismo e o antichauvinismo; bem como a luta contra a hegemonia e a colonização.
Em suma, nada que o faça um darling de Wall Street, Londres e Bruxelas. A busca das raízes nacionais russas, após a rendição capitaneada por Gorbachev e Yeltsin ao imperialismo decadente e à globalização, ao invés de sintoma de reacionarismo, é sinal de lucidez e de compromisso com a verdade.
A historiadora Jane Burbank, da Universidade de Nova York, em março deste ano registrou no jornal “The New York Times” como fontes do pensamento de Dugin as concepções que emergiram após a queda do império russo, em 1917, que colocavam a Rússia como uma sociedade organizada “formada por uma profunda história de intercâmbios culturais entre povos de origem turca, eslava, mongóis e outras origens asiáticas”.
O que foi aprofundado, gostem ou não, pelas décadas de experiência soviética, com a URSS inspirando, impulsionando e apoiando a construção de sociedades mais igualitárias, mais tolerantes, mais plurais, mais democráticas, assim como a luta dos povos pela descolonização e eliminação final da herança escravagista e racista no planeta.
Quando nos anos 2000, Putin, que supostamente havia sido escolhido para ser o sucessor no desmanche yeltsinista, afirmou que “a Rússia sempre se viu como um país eurasiano”, a reação de Dugin foi considerar tal declaração como “histórica, grandiosa e revolucionária” e que “muda tudo”.
Como Putin tem afirmado, e vinha chamando a atenção para o problema desde 2007 em Munique, o mundo unipolar finou-se. E seu réquiem soou em 24 de fevereiro deste ano, com o basta à expansão da OTAN a leste, após as relações estratégicas da Rússia com a China se tornarem “as maiores desde sempre” e o redirecionamento para abraçar o Sul Global.
Papiro