Foto: Fernando Frazão/Arquivo/Agência Brasil

Implantar políticas públicas ambientais no Brasil não é tarefa fácil. É preciso enfrentar todo tipo de situação — do lobby do agronegócio às atividades ilícitas do garimpo; de entraves às políticas de preservação e conservação envolvendo diferentes níveis de governo à falta de destinação correta de resíduos, entre muitas outras questões. O problema se torna ainda mais complexo no âmbito municipal, onde muitas vezes faltam recursos e sobram interferências do poder econômico e de lideranças locais, nem sempre comprometidos com a causa. 

Soma-se a tudo isso, ainda, o desmonte vivenciado pelo país nessa área durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) e os males trazidos pelos discursos e ações negacionistas e de liberação quase total de qualquer atividade econômica por parte da extrema-direita, independentemente dos impactos que podem ter para o meio ambiente, população em geral e povos originários. Para estes setores, florestas são entraves; indígenas e quilombolas são um obstáculo ao uso comercial das terras que historicamente ocupam e o fogo é um aliado para a ocupação de novos espaços. 

O cenário dramático enfrentando pelo país nos últimos tempos — com queimadas e secas de um lado e enchentes de outro — é resultado de tudo isso e de uma histórica dificuldade de sucessivos governos — nos três níveis federativos —, legislativos, judiciários, setor empresarial e população compreenderem que é possível haver desenvolvimento com sustentabilidade, desde que novas práticas sejam empreendidas. 

Para lidar com essa situação, considerando o papel dos municípios no contexto das eleições deste ano, José Antônio Bertotti, ex-secretário de Meio Ambiente de Pernambuco e pesquisador da Universidade Federal de PE, defende um Estado nem máximo, nem mínimo, mas necessário, que invista, sobretudo, na regulação e na fiscalização.

“Quando prevalece a lógica do mercado, que favorece única e exclusivamente a acumulação individual, a regulação se direciona para flexibilizar a questão do cuidado com as pessoas, com o meio ambiente, com o futuro do nosso Brasil”, diz. 

No caso dos municípios, ele sugere que as administrações locais invistam, principalmente, na ampliação e proteção das áreas de preservação, no saneamento público adequado e numa gestão eficiente e ambientalmente responsável dos resíduos sólidos. 

Confira abaixo os principais trechos de entrevista concedida ao Portal Vermelho.

Campanha negacionista

“Uma das dificuldades que o país tem enfrentado para avançar em  políticas ambientais diz respeito à forte campanha negacionista, que divide a nossa sociedade sob vários aspectos. Esse posicionamento se utiliza das questões religiosa, ideológica, da ciência, da saúde…E a questão ambiental também insere nesse processo de disputa.

Há até pouco tempo, a gente viveu sob a égide de um governo absolutamente negacionista e que ressuscitou e deu voz à direita. Não sou daqueles que acham que as pessoas não têm o direito de defender sua opinião, muito pelo contrário.  Agora, impor essa opinião e, principalmente, fazer com que políticas de Estado que estão consolidadas na Constituição — que estabelece como um dever do Estado conservar e preservar determinadas áreas ambientais para o bem-estar comum — é ir muito além da mera defesa de uma opinião”.

Desmonte do Sistema Nacional de Meio Ambiente

“Outra dificuldade está no fato de que foi colocada em prática uma lógica de desmonte do Sistema Nacional de Meio Ambiente. O maior exemplo foi a quase extinção do Conselho Nacional de Meio Ambiente. A famosa frase de aproveitar para ‘passar a boiada’ (dita pelo então ministro Ricardo Salles) não ficou apenas nas palavras. Todo esse processo levou aos reflexos que sentimos agora. 

Mas, não é só isso: na medida em que se defende ou se impõe uma opinião de que o meio ambiente atrapalha o desenvolvimento econômico, os negócios, cria-se uma disputa que é ideológica, anticonstitucional e o sistema de manutenção da conservação e da preservação vai sendo enfraquecido”.

Responsabilidade dos entes federativos

“Do ponto de vista ambiental, não existe uma responsabilidade maior dos governos federal, estaduais ou municipais. Inclusive, o Sistema Nacional de Meio Ambiente atribui responsabilidade a todos os três entes de maneira equânime. O licenciamento é definido por norma do Conama (Conselho Nacional do Meio Ambiente) porque determinados projetos de impacto ambiental precisam ser licenciados em um dos três níveis. 

Mas, um bioma não fica restrito ao território de um município. As questões, por exemplo, relativas ao uso da água, da terra, a instalação das indústrias, tudo acontece no território do município. E, evidentemente, esses impactos se refletem nos biomas que estão dentro e fora daquele município. E esta figura da federação brasileira é muito interessante porque é a que menos recebe recursos, mas é a que mais opera o território”. 

Regulação e fiscalização

“Para lidar com situações como essas, é preciso, essencialmente, trabalhar com a regulação e com a fiscalização. Esse é o papel do Estado. Luciana Santos, ministra de Ciência, Tecnologia e Inovação e presidente do PCdoB, costuma dizer que não defende nem o Estado máximo, nem o Estado mínimo, mas o Estado necessário.

O papel do Estado é regular e fiscalizar. Por que o agronegócio, por exemplo, avançou tanto no Pampa e no Cerrado e está avançando sobre a  Amazônia? Isso não é de agora. Na época da ditadura militar quando se falava em ocupar a Amazônia, o governo considerava que se você desmatasse a terra para plantar ou para criar gado, você criava uma benfeitoria. Portanto, você ganhava o título da terra. 

As quebras e flexibilizações no arcabouço legal; a falta de regulação e de fiscalização; o fato de ainda não ter sido instituído, no âmbito federal, com apoio dos estados e dos municípios, os Programas de Regularização Ambiental (PRAs) previstos no Código Florestal; a necessidade de se cuidar das unidades de conservação e das Áreas de Conservação Permanentes (APPs); o cuidado com as nossas nascentes…tudo isso faz diferença. Se a gente colocar essa máquina em funcionamento, o Brasil vai para outro patamar na questão ambiental. 

O fato é que quando prevalece a lógica do mercado, que favorece única e exclusivamente a acumulação individual, a regulação se direciona para flexibilizar a questão do cuidado com as pessoas, com o meio ambiente, com o futuro do nosso Brasil”.

A sedução do discurso da direita

“Para a direita, o meio ambiente é um entrave ao desenvolvimento. E a esmagadora maioria da população não está preocupada com propostas ambientais, o povo está querendo saber como é que resolve o seu problema imediato da fila da saúde, de uma escola para o seu filho, do ônibus que ele está pegando e que está lotado. Metade da população brasileira vive com um salário mínimo para sustentar a família. Nessa situação, como é que o cara vai ter condição de pensar no que é uma boa proposta para o meio ambiente?

Então, vem um candidato da direita e diz o seguinte: ‘olha, meu filho, os caras lá da agência ambiental disseram que esse terreno aqui não pode ser usado para fazer essa fábrica. Então você não vai ter emprego’. O debate é reduzido a isso. E aí a direita ganha, claro.

Agora quando você faz uma pesquisa e pergunta se as pessoas acham que as mudanças climáticas impactam na sua vida, 90% dizem que  sim. Mas, como é que isso se relaciona com o dia a dia? Por isso que eu digo que é preciso tratar da questão do lixo e do esgoto, que estão presentes no cotidiano de todo mundo”.

Eleição municipal e a questão ambiental

“Acho que a questão ambiental ainda aparece, para quem se preocupa em falar, como um mote que dá um certo glamour para a sua campanha. E para mim, no âmbito municipal, a questão ambiental está relacionada com o básico, com o cotidiano, como coloquei antes.

Primeiramente, é preciso ampliar e proteger as áreas de preservação. Porque mesmo que seja uma unidade federal ou estadual, o município também é responsável. Além disso, muitos têm unidades municipais de conservação. 

Mas, há outras duas questões fundamentais: saneamento e gestão dos resíduos sólidos. Se a administração local cuidar dessas duas coisas, já estará dando qualidade de vida e contribuindo muito para o meio ambiente. Afinal, o esgoto das cidades, em geral, é despejado nos rios, muitas vezes usados também para o abastecimento. E aí está a principal fonte de contaminação e de gasto em saúde pública no Brasil. O cuidado com a água está diretamente relacionado com o meio ambiente e com a saúde pública”.

Resíduos sólidos

“Os resíduos sólidos também estão diretamente relacionados com o meio ambiente. É necessário repensar seu reaproveitamento, até porque isso pode gerar renda com a economia circular. 

Além disso, acredito na necessidade de mudar o sistema de coleta de lixo nas cidades, mas o lobby é pesado. Imagina mais de 5,5 mil municípios cada um tem seu contrato de lixo. O problema é que atualmente, contrata-se a empresa para recolher, transportar e botar o lixo no aterro. A medida que o Tribunal de Contas usa para fiscalizar isso é o caminhão entrando no aterro com o volume de lixo —  não interessa se está entrando vidro ou geladeira. Quanto mais peso, melho para a empresa, que vai ganhar mais.

Agora, se a gente consegue mudar o contrato de lixo para estabelecer que a empresa será paga para manter a cidade limpa, ela terá de varrer, recolher e destinar. E neste caso, vai buscar outra solução porque passará a ser melhor reaproveitar o resíduo — dá para vender o papel e o metal e compostar o material orgânico para produzir biometano. Aí muda o negócio. Só que hoje o negócio é só recolher, transportar e enterrar.

Neste ano, o governo do estado de Pernambuco ganhou um prêmio nacional por que encerrou os lixões. Fizemos isso em 2022. O que a gente fez? A gente pegou a Agência Ambiental, o Tribunal de Contas e o Ministério Público e dissemos às prefeituras que não podia mais colocar lixo em lixão. Os três órgãos atuaram de maneira conjunta regulando e fiscalizando e conseguimos garantir uma boa solução”.