Mais de 2 milhões de pessoas vivem sob ameaça de despejo; maioria é negra e feminina

Ter acesso a uma mordia digna é um direito humano básico, mas historicamente negado a parte considerável da população brasileira. Essa realidade faz com que, somente entre 2020 e 2025, mais de dois milhões de pessoas tenham sido afetadas por cerca de três mil casos de conflitos por terra e moradia. Essas pessoas correm risco real e cotidiano de serem removidas à força de seus lares.
A grande maioria é formada por negros (66%) e por mulheres (62%). Tais situações envolvem, ainda, 415,5 mil crianças de até 14 anos e 327,4 mil idosos com mais de 60 anos.
Os dados fazem parte de um mapeamento nacional feito por ocasião dos cinco anos de atuação da Campanha Despejo Zero, que reúne 175 organizações, entidades e movimentos sociais em defesa da vida no campo e na cidade.
Ao todo, mais de 62,3 mil famílias foram despejadas, enquanto mais de 107 mil têm ordens suspensas, desde 2020. Além disso, o documento aponta que, em relação ao levantamento divulgado em 2024, “foram identificados 1.217 novos casos de conflitos fundiários. Isso significou aumento de 615.988 pessoas no total de pessoas impactadas, 122.599 novas famílias ameaçadas, 22.717 novas famílias despejadas e 38.735 novas famílias vivendo em áreas com despejo suspenso”.
O estado de São Paulo acumula, de longe, o maior número de famílias ameaçadas (cerca de 160 mil) e despejadas (20 mil). Em seguida estão Pernambuco e Amazonas, com mais de 40 mil sob esse tipo de risco em cada estado.
De acordo com o relatório, “as principais justificativas por trás das ameaças e remoções são as reintegrações de posse. Também chamam a atenção os casos de remoções relacionadas a obras públicas e remoções em áreas de risco e de proteção ambiental, nos quais agentes públicos como prefeituras e governos estaduais muitas vezes se convertem em agentes promotores de violações de direitos no âmbito de despejos administrativos relacionados a questões ambientais”.
Ofensiva parlamentar
Para piorar o quadro, o levantamento também mostra a atuação de iniciativas como a Frente Invasão Zero, que atua no Congresso Nacional e é formada por parlamentares da extrema direita e das bancadas da bíblia, do boi e da bala. O objetivo dessa articulação é criminalizar os movimentos por moradia e barrar iniciativas em benefício dessa população.
“A dimensão legislativa dessa ofensiva é particularmente preocupante. Em levantamento realizado pela Campanha Despejo Zero, até o primeiro semestre de 2025, foram identificados 108 projetos de lei alinhados à pauta da Frente Invasão Zero em tramitação nas três esferas federativas — Congresso Nacional, assembleias legislativas estaduais e câmaras municipais. Desses, 61 tramitam na esfera federal”, mostra o relatório.
Essas proposições incluem temas como a tipificação penal de ocupações coletivas com agravantes para organizações envolvidas; a autorização para despejos administrativos imediatos sem necessidade de decisão judicial; a equiparação de movimentos sociais a milícias ou organizações criminosas e o impedimento de acesso a políticas públicas por pessoas envolvidas
em ocupações.
Impactos materiais e emocionais
Para além da grave violência que um despejo ou sua ameaça por si só já representa, há outros efeitos nem sempre tangíveis que vão desde aspectos psicológicos e emocionais até sociais que afetam profundamente as pessoas submetidas a esse tipo de situação.
Como exemplos desse tipo de impacto, vale citar que como se não bastasse a perda material, ao serem despejadas, as famílias e seus filhos “não perdem só o direito à moradia, mas a todos os demais serviços e redes de apoio que estão atrelados à residência fixa. Ao perder-se a moradia, esfacelam-se as redes de apoio, que viabilizam que mães solo possam deixar os filhos em segurança com parentes e vizinhos para trabalhar, gerar renda e garantir o sustento para a família”, afirma o relatório.
O levantamento lembra, ainda, que “para as mães que perdem o chão que sustenta suas rotinas, resta o desespero de não saber para onde ir, a angústia de não ter para onde voltar, o medo e a incerteza de não conseguir mais prover uma vida digna para sua família”.
Além disso, completa, “os danos coletivos incluem a perda de referências culturais, religiosas, de paisagem e de identidade”.
Precariedade habitacional
A Campanha Despejo Zero reforça, ainda, que o Brasil tem cerca de 6,2 milhões de domicílios em situação de déficit habitacional, conforme dados da Fundação João Pinheiro. Segundo os critérios da FJP, esse tipo de déficit diz respeito às moradias que não atendem a um padrão mínimo de qualidade e quantidade — por exemplo, domicílios precários e improvisados ou muito adensados.
O relatório da CDZ salienta que dentro desse número “estão as famílias que precisam escolher se comem ou pagam aluguel no fim do mês e aquelas que moram de favor ou em condições extremamente precárias por não terem alternativa de moradia. Além disso, 26,5 milhões de domicílios enfrentam inadequações habitacionais, seja na estrutura interna das moradias, seja nas condições de infraestrutura onde estão localizadas, ou ainda na situação fundiária da posse da moradia”.
Novamente, são os negros e as mulheres os mais submetidos a esse tipo de cenário: 75% dos domicílios em situação de déficit habitacional são de baixa renda, 66% são de pessoas negras e 62% são chefiados por mulheres.
A Campanha ressalta que não estão incluídos nesse universo as pessoas em situação de rua, nem aquelas que perderam sua moradia em consequência de desastres socioambientais ou por despejos e remoções forçadas. “Ou seja, o direito humano e constitucional à uma moradia digna nas cidades brasileiras ainda é um privilégio, inalcançável para muitas brasileiras e brasileiros”, conclui.
Contexto rural
A extrema e histórica concentração de terras no Brasil, a expulsão de suas populações e o avanço do agronegócio estão entre os fatores que impõem dificuldades de moradia para uma fatia considerável da população no campo.
O relatório lembra que o Censo Agropecuário demonstrou que “apesar de a agricultura familiar ainda ser maioria em quantidade de estabelecimentos, não o é em extensão de terra. Os dados de 2019 apontam que 77% das terras agrícolas estão nas mãos do agronegócio. Em dez anos, enquanto a receita total dos
estabelecimentos da agricultura familiar cresceu 16%, a dos demais estabelecimentos cresceu 69%”.
Além disso, salienta, o Atlas do Espaço Rural Brasileiro mostra que “produtores pretos e pardos se concentram em pequenos estabelecimentos e que brancos são maioria conforme aumenta a área. É na região Centro-Oeste onde a situação é mais alarmante. Lá, a área média dos estabelecimentos é de 322 hectares, quase cinco vezes maior que a média nacional de 69 hectares”.