Talvez se torne mais claro agora o significado da expressão utilizada pelo Manifesto Comunista: “lutas de classes” (KlassenKämpfe). O plural não quer denotar a repetição do idêntico, o contínuo recorrer à mesma forma da mesma luta de classes; não, o plural remete à multiplicidade das configurações que a luta de classes pode assumir. Domenico Losurdo

A proposta de resolução apresentada pelo Comitê Central é bastante feliz no que tange seus principais aspectos. Chamo a atenção para os parágrafos 121 a 126, que versam sobre a necessidade da construção de uma frente ampla, que considere as diferentes contradições acumuladas historicamente no seio do povo, sem, contudo, limitar-se a tendências estreitas e fragmentárias. Em suma, o texto preconiza a adequada articulação dialética entre o geral e o específico (CHEPTULIN: 2004, p. 199), convergindo na construção da frente ampla, com a política e o projeto nacional no posto de comando.

Contudo, o cotidiano da vida partidária e dos debates congressuais vem revelando diferentes graus de compreensão desta articulação no seio da militância e mesmo dos quadros partidários. Há, por um lado, uma compreensão reducionista do que seria “luta de classes”, esta seria aquela travada única e exclusivamente no movimento sindical, numa concepção economicista da luta social, política e ideológica. De outro lado, é inegável a presença de concepções multiculturalistas, fragmentárias e também reducionistas que tratam as lutas de mulheres, negros, juventude e LGBT todos com o mesmo peso e sentido, desconsiderando a centralidade da categoria trabalho. Seriam lutas comportamentais, por reconhecimento e poder nos marcos das instituições, onde passa ao largo a análise classista da realidade e o apelo ao socialismo é mero exercício retórico.

Creio que o primeiro entrave a superar é a visão esquemática do que seja luta de classes. Marx e Engels afirmam em A Ideologia Alemã que a primeira opressão de classe é a opressão do homem sobre a mulher (Engels recuperaria este mesmo raciocínio no clássico A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, já apoiado nas pesquisas antropológicas de Morgan), pois tem por base o advento da propriedade privada e consequente divisão sexual do trabalho.

A outra questão é compreender que a questão da mulher concerne à toda a Humanidade e sua reprodução, sendo diferente de demais grupos sociais, cuja particularidade pode ser isolada de um todo, em um período histórico, em um espaço geográfico, como são as chamadas minorias, é evidente que a vida é caracterizada por uma infinidade de conflitos que se desenvolvem entre os indivíduos pelas mais diferentes razões, mas aqui trata-se de analisar os conflitos que têm como protagonistas não indivíduos singulares, mas sujeitos sociais e que, de modo direto ou indireto, imediato ou mediato, remetem à ordem social, a esta ou àquela essencial articulação da divisão do trabalho e da ordem social. LOSURDO: 2015; p.64

Portanto, a emancipação da mulher não se limita apenas à batalha comportamental na sociedade, por direitos civis ou liberdade sexual. Estas integram a agenda de lutas do movimento feminista e são importantes. Entretanto, é necessária uma articulação entre micro e macro política que garanta ao movimento feminista seu potencial revolucionário: só uma sociedade em que não haja divisão do trabalho e propriedade privada dos meios de produção é que a mulher poderá ser realmente livre. Ou, como defendem as feministas emancipacionistas: somente a emancipação da humanidade irá emancipar as mulheres, e somente a emancipação das mulheres emancipará toda a humanidade, pois o patriarcado foi estruturante de todas as sociedades, todos os modos de produção conhecidos até hoje. Por isso, trata-se de uma luta estrutural e superestrutural de profundo sentido estratégico. A luta da mulher por emancipação não é uma contraposição à luta de classes, mas uma expressão dela. Segundo o filósofo marxista italiano Domenico Losurdo (2015), a luta de classes que tem como protagonistas os povos em condições coloniais ou semi coloniais ou de origem colonial; a luta travada pela classe operária nas metrópoles capitalistas (na qual se encontra a reflexão de Marx e Engels); a luta das mulheres contra “a escravidão doméstica”. Cada uma dessas três lutas põe em discussão a divisão do trabalho vigente em âmbito internacional, nacional e familiar. “Relação de coerção” (Zwangsverhältniß) é que na sociedade burguesa existe entre capital e trabalho, mas pode-se fazer a mesma consideração para as outras duas relações. As três lutas de emancipação põem em discussão as três “relações de coerção” fundamentais que constituem o sistema capitalista. LOSURDO: 2015; p.64

Este trecho alarga a compreensão do que seria luta de classes, e recupera a elaboração do próprio Marx, de que não haveria apenas luta de classes, mas lutas de classes.

Podemos chegar a algumas conclusões. Em primeiro lugar, em virtude de sua ambição de abraçar a totalidade do processo histórico, a teoria da luta de classes se configura como uma teoria geral do conflito social. Segundo O Manifesto Comunista,  “a história de cada (aller) sociedade até hoje existente”, “a história de toda (ganzen) sociedade” a caracterizar-se pela “lutas de classes” e pelos “antagonismos de classes”. (…) que identifica na luta de classes o conflito social enquanto tal. Independentemente dos protagonistas e da forma que ele assuma. LOSURDO: 2015; p.64

Ou seja, será menos o mote da identidade em torno da qual se organiza determinado grupo social e mais a orientação de sua pauta reivindicatória que irá determinar se ele é classista ou pós-moderno. Haverá movimentos de mulheres e negros que serão classistas, bem como há movimentos feitos por trabalhadores que são liberais e até patronais. E para navegar nas turbulentas águas da dispersão e da falta de esperança em que foi lançada a nação brasileira, a costura da unidade em defesa de um novo projeto nacional de desenvolvimento passa por alinhavar as diversas formas de organização e luta do povo brasileiro, conferindo-lhe sentido classista, nacional e anticolonial. Mais do que nunca, a luta dos trabalhadores, sejam mulheres, negros, jovens ou LGBT deve ser a defesa da nação.

Referências

CHEPTULIN, A. A Dialética Materialista – categorias e leis da dialética. Alfa-ômega: 2004.

LOSURDO, D. A luta de classes. Boitempo Editorial: 2015.

MARX & ENGELS. A Ideologia Alemã. Boitempo Editorial: 2007.

*Mariana Venturini é vice-presidenta nacional da União Brasileira de Mulheres e presidenta da entidade no estado de São Paulo