Durante a década de 1970 diversos países da América Latina se encontravam em contexto de ditadura civil-militar, momento onde se agravavam diversas mazelas sociais e mecanismos de repressão, ao passo que se presenciava também uma efervescência de questionamentos e resistências. O campo da Psicologia Social foi fortemente impactado nesse cenário! Passou por uma severa revisão crítica dos pressupostos teóricos que embasavam a profissão, onde havia forte influência da Psicologia Social Tradicional desenvolvida nos EUA, que mais se ocupava de adaptar os sujeitos ao meio do que propriamente analisá-lo criticamente e atuar no sentido de promover processos de emancipação e transformação social.

Por Fhillipe Antônio*

Na contramão dos mecanismos de adaptação e controle vai se estruturando uma Psicologia Social Crítica, ou Psicologia Sócio-Histórica, na América Latina. No Brasil a professora Silvia Lane da PUC/SP ganha destaque através de sua produção teórica e engajamento político, atuando no sentido de romper com o elitismo da ciência e profissão para aproximá-la da realidade brasileira. Vai buscar no materialismo histórico dialético subsídios para inserir, na análise da subjetividade, não só as determinações sócio-históricas como também uma concepção do humano como sujeito transformador da história. Silvia supera a dicotomia indivíduo-sociedade afirmando o caráter dialético da relação subjetividade-objetividade. Seu grupo de pesquisa, onde também se destacam Antônio Ciampa e Bader Sawaia, ajuda a sedimentar esse caminho ao aprofundar a investigação sobre identidade e afetividade.

Herdamos da filosofia cartesiana, do positivismo científico e, em certa medida, do próprio materialismo uma certa aversão à afetividade, pois esta seria supostamente um elemento que deturpa o rigor das análises científicas. Frequentemente recorremos a figura do “sujeito racional” como uma alegoria para legitimar determinado pensamento ou ação. Por trás dessa postura existe a inútil tentativa de afirmar uma neutralidade científica, pois ainda temos o hábito de ver as emoções apenas por um viés negativo, quase nunca como potência. Sawaia, contudo, a partir das contribuições de Marx, Espinosa e Vygotsky, elabora um outro papel para os afetos. Estes seriam uma espécie de ponto de partida para a conscientização política e a liberdade. A capacidade que nosso corpo tem de ser afetado é uma condição para um posicionamento ético que, por sua vez, evoca uma postura política que visa a liberdade (potência de ação). Contudo, segundo a perspectiva de Espinosa, existem as paixões alegres e as paixões tristes, sendo que estas últimas direcionam a ação humana para a manutenção das relações servis.

Para ilustrar melhor esse processo basta que você, que lê essas linhas, por um instante interrogue os motivos que lhe fizeram entrar para a militância. Tome um tempo e analise! Certamente recordará de algum episódio de sua história onde se defrontou com uma experiência de indignação ou revolta frente a uma circunstância de desigualdade social. Certamente você foi tomado por um afeto que não lhe permitiu naturalizá-la. Você não viu outra saída senão agir! É o que Sawaia nomeia de “sofrimento ético-político”. Contudo não quero aqui priorizar as emoções como faculdade psíquica que desperta a conscientização, pois as funções psíquicas (percepção, pensamento, memória, emoção, consciência, imaginação, etc.) atuam em conjunto e subsidiam a cognição humana para agir no mundo. Não há revolução que se concretize renunciando qualquer uma delas!

Resgatar um pouco da trajetória do campo da Psicologia Social Crítica, aqui de maneira bastante superficial, é importante para captar a complexidade do humano, especialmente quando queremos compreender a postura do povo brasileiro em momentos decisivos. Estamos em 2017, sob o regime de um governo golpista, e é inegável que o povo tem sido visto por nós mais como “um peso difícil de convencer e mobilizar” do que como solução. Nesse cenário, a política institucional desponta como a via esperançosa, em detrimento da luta dos movimentos sociais e luta de ideias. Precisamos nos interrogar sobre o que impede que se estabeleça uma comunicação efetiva e de confiança na relação partido-povo.

Outro entrave atual é nossa postura quanto aos “movimentos identitários”. Carecemos de uma perspectiva marxista para tratar destes assuntos na complexidade que hoje os constitui. Devido a essa defasagem, deixamos um vácuo político do qual o capital de apropria. Fazemos a necessária crítica à concepção pós-moderna, que desconsidera a luta de classes, nega a estrutura e as determinações sócio-históricas que constituem a subjetividade: o ser humano determinado. Porém, muitas vezes jogamos fora a água do banho junto com o bebê ao negarmos a identidade em si. Nos equivocamos ao tomar o pós-modernismo como parâmetro para essa análise nos limitando apenas em apontar as críticas (antítese) sem propor quase nada (síntese). Temos a ilusão de que basta discutir o macro para intervir no micro, como se fossem dimensões distintas, quando na realidade são dialéticas.

O estudo dos fenômenos de subjetivação pelo materialismo histórico dialético nos permite superar a dicotomia indivíduo-sociedade e entendê-los em sua relação dialética: não só o ser humano determinado, mas também determinante, sujeito transformador da história. Não somos apenas um desdobramento de uma estrutura, mas também a constituímos como agentes. Do ponto de vista econômico é inegável que somos oprimidos, porém a complexidade das relações humanas, por mais que fundadas num modelo de produção explorador, não se esgota aí. Se o capitalismo, através dos atravessamentos ideológicos, se utilizou do ódio à diferença na sociedade para fragmentar o povo e se, uma vez sendo materialistas, também somos forjados subjetivamente nessa estrutura opressora, convém situar que reproduzimos opressão. Se somos produto/produtor, determinado/determinante, oprimido/opressor é ingênuo e equivocado secundarizar a pauta identitária. Ao contrário, precisamos afirmá-la trazendo para a centralidade da luta de classes. Partir do singular (multiplicidade das pautas) para afirmar o genérico (burguesia x proletariado). Um interessante ponto de partida seria debater interdisciplinarmente para diagnosticar as contradições que nos impedem de avançar e conceber uma nova estética que nos permita uma comunicação potente com o povo.

*Fhillipe Antônio é graduando de Psicologia na UFRJ e militante da UJS e PCdoB.