Quem faz história e não se apropria da sua história na prática fica sem história. E não há forma de se entender o presente e pensar o futuro sem conhecer o passado. Os comunistas podem se considerar privilegiados nesse aspecto porque nenhuma corrente política tem mais história neste país do que o Partido Comunista do Brasil. O ponto é: nossa militância se apropria dessa história? Quantos comunistas conhecem razoavelmente nossa trajetória, nossas posições táticas, nossos saltos estratégicos e nossas inovações ideológicas? Em que medida usamos esse acervo para nos pautar e nos orientar, inclusive no sentido de não repetirmos crassos erros do passado?

Por Osvaldo Bertolino*

Se a medida for a difusão dos nossos materiais, pode-se dizer que não estamos à altura da nossa história. Mesmo as audiências dos nossos portais (o Vermelho mais dedicado ao enfoque do cotidiano e o Grabois voltado às densidades históricas-teóricas) não condizem com nossos propósitos. Se estendermos a constatação para livros e a revista Princípios, fica-se com a sensação de que muita gente fala, poucos escutam e quase ninguém presta atenção. Não há justificativas, por exemplo, para não se realizar plenamente o valor de uso de uma tiragem de mil exemplares dos nossos livros.

Existe muito nisso tudo aquilo que o histórico dirigente do PCdoB Pedro Pomar certa vez chamou de “soberba”. “Os comunistas precisam o quanto antes abandonar qualquer mania de se tornarem conhecidos pela pose ou pelo gesto dos sabe-tudo”, escreveu ele. Essa e outras coisas ditas por Pomar servem para hoje, com absoluta propriedade, o que chama a atenção para a tão falada opção cotidiana do comunista, facilmente massacrada pelos não menos falados malditos problemas do dia a dia. A superação dessa tendência inercial, contudo, só é possível com a persistente constatação das suas causas.

A incontestável crise do marxismo contribui muito para isso. Não é possível desenvolver a perspectiva revolucionária sem um mergulho na história e nas categorias que permitiram aos comunistas do passado interpretar os acontecimentos do seu tempo. É imprescindível, sobretudo, compreender que os bolcheviques de “têmpera especial” partiram a história em duas, abalaram o mundo, romperam pela primeira vez a estrutura e a lógica do capitalismo — tomaram o céu de assalto, como dizia Karl Marx sobre os revolucionários da Comuna de Paris de 1871 —, mas foram marxistas do seu tempo. E ninguém mais do que o PCdoB tem compreendido essa dialética. O desafio permanente é fazer dessa compreensão prática cotidiana.

Pedro Pomar falou disso quando assumiu a Secretaria Nacional de Educação e Propaganda, em 1946. “Observa-se, através de artigos assinados na nossa imprensa, oradores e mesmo organizadores de comícios com incompreensão política e subestimação dos materiais teóricos do nosso Partido”, disse ele. “Todo mundo se julga um educador e agitador de massa, mas na prática o que vimos é que a linha do Partido ainda não foi assimilada ao nível necessário requerido para tornar cada militante digno de um partido de duzentos mil filiados e um milhão de eleitores”, ralhou. “Todos se julgam bons educadores e propagandistas, sem compreender que essa tarefa exige especialização, estudo e organização; e não palpites e improvisações”, complementou.

Ele também tocou num ponto nevrálgico, muito presente na nossa militância. “O que continua sendo fundamental no trabalho de educação e propagada? A imprensa”, respondeu. Todos conheciam o valor dela na luta pela democracia. Todos se recordavam do papel da Tribuna Popular e dos demais jornais do Partido no desmascaramento das provocações às liberdades democráticas. A imprensa decidiria a vitória eleitoral porque os comunistas não possuíam nenhum outro instrumento para levar suas palavras ao povo e se ligar às massas, educando-as e organizando-as.

A educação dos quadros era outro grave problema, constatou Pomar. Tarefa traçada pela III Conferência, realizada em 1946, não estava sendo executada como desejado. Havia, entre outros entraves, o baixo nível ideológico dos camaradas responsáveis dos comitês estaduais. A leitura também era uma grave deficiência. “Todos dizem que querem melhorar seu nível político, mas ninguém lê a História do Partido. Outro caso típico ocorrido com as nossas editoras é o seguinte: editamos um livro básico de Stálin, O marxismo e o problema nacional e colonial. Remetemos o volume para alguns comitês estaduais pelo reembolso postal. O comitê do Paraná nem abriu o pacote: devolveu-o fechado. E mandamos um só exemplar”, disse.

Qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência. Esse diagnóstico de Pomar insere-se na clássica tendência à perpetuação de fórmulas tradicionais e petrificadas do exercício do raciocínio. Não é incomum verificar que quando se ultrapassa a fronteira do pragmatismo esbarra-se na leitura meramente folhetinesca do que exige profundidade. Algo como o que disse Galileu, quando ele se viu acossado pelos aristotélicos das universidades: filosofar, para certos críticos, não é outra coisa senão folhear os textos de Aristóteles, nos quais fatalmente seriam encontradas todas soluções para todos os problemas.

*Osvaldo Bertolino é jornalista e escritor.